domingo, 17 de janeiro de 2021

Mitificação do Herói



*        Em Camões é mais forte o sentido viril, de ímpeto de realizar.

*     Camões, que vê o Império ainda vivo, exalta os heróis para a ação. 



*        Os heróis de Camões guiam-se pela bravura, pela missão de fé, pelo risco e pela aventura. São de carne viva. 

*        Camões exorta um D. Sebastião ainda vivo, ciente que está de um Império que embora em perigo pode ainda sobreviver e renovar-se.

*       Os Lusíadas são a exortação pura, do D. Sebastião presente, da esperança na renovação do Império decadente.

*        O Sebastião de Camões é viril e aventureiro, à moda das histórias de cavalaria da época.



Os Lusíadas

 A origem da palavra Lusíadas – Conta a lenda que Luso, filho de Baco, deus do vinho, fundou,

no extremo ocidental da Península Ibérica, um reino, ao qual deu um nome derivado do seu:
Lusitânia.
Na realidade, quando os Romanos se estabeleceram na Península Ibérica, por uma questão
administrativa, dividiram-na em três províncias, conservando o nome Lusitânia para toda a
região compreendida a sul do Rio Douro.
No século XVI, os escritores nacionais começaram a usar a palavra Lusitanos como sinónimo de
Portugueses, o que foi aproveitado por Camões.
Foi com base nisso que o poeta criou uma palavra nova que iria dar nome à sua obra épica: Os
Lusíadas, ou seja, o Povo de Luso – os Portugueses.

Proposição aponta para os quatro planos do poema:
 1. O Plano da Viagem - celebração de uma viagem:
"...da Ocidental praia lusitana / Por mares nunca de antes navegados / Passaram além da
Tapobrana...";
 2. O Plano da História - vai contar-se a história de um povo:
"...o peito ilustre lusitano..."."...as memórias gloriosas / Daqueles Reis que foram dilatando
/ A Fé, o império e as terras viciosas / De África e de Ásia...";
3. O Plano dos Deuses (ou do Maravilhoso) - ao qual os Portugueses se equiparam:
"... esforçados / Mais do que prometia a força humana..."."A quem Neptuno e Marte
obedeceram...";
 4. O Plano do Poeta - em que a voz do poeta se ergue, na primeira pessoa:
"...Cantando espalharei por toda a parte. / Se a tanto me ajudar o engenho e
arte..."."...Que eu canto o peito ilustre lusitano...".



Invocação (C. I, 4-5)
4
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.

5
Dai-me ũa fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.

Invocar significa apelar, pedir, suplicar.
Na Invocação, Camões dirige-se às Tágides, as ninfas do Tejo, pedindo-lhes que o ajudem a cantar os feitos dos portugueses de uma forma sublime:

“Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,”
Tratando-se de um pedido, a Invocação assume a forma de discurso persuasivo, onde predomina a função apelativa da linguagem e as marcas características desse tipo de discurso – o vocativo e os verbos no modo imperativo - determinam a estrutura do texto:

E vós, Tágides minhas, (...)
Dai-me (...)
Dai-me (...)
Dai-me (...)


O poeta pede às Tágides o estilo elevado que a epopeia e a grandiosidade do assunto requerem; o " som alto e sublimado ", exigido pelo " novo engenho ardente " que as ninfas colocaram nele. Como poeta experiente que é, sabe que a tarefa a que agora se propôs exige um estilo e uma linguagem de grau superior, por isso estabelece ao longo das duas estâncias um confronto entre a poesia lírica, há muito por ele cultivada, e a poesia épica, a que agora se abalança.

POESIA LÍRICA
POESIA ÉPICA
verso humilde
agreste avena
frauta ruda

novo engenho ardente
som alto e sublimado
estilo grandíloco e corrente
fúria grande e sonorosa
tuba canora e belicosa

Dedicatória

A dedicatória é uma parte facultativa da estrutura da epopeia. Camões inclui-a n’Os 
Lusíadas ao dedicar a sua obra ao rei D. Sebastião.
Nessa altura, D. Sebastião era ainda muito jovem e por isso era visto como a esperança
da pátria portuguesa na continuação da difusão da fé e do império.
D. Sebastião, rei de Portugal de 1568 a 1578, foi o penúltimo rei antes do domínio
espanhol (1580-1640). O seu prematuro desaparecimento numa manhã de nevoeiro na batalha
de Alcácer Quibir deu origem ao mito sebastianista, um sentimento muito português, que nasceu
de uma lenda e que tem povoado o imaginário coletivo do nosso povo, ao longo dos séculos.

 Para além do elogio ao rei, Camões pretende convencê-lo a aceitar o seu canto, por isso
recorre a uma linguagem argumentativa, sendo a função de linguagem predominante a apelativa.
O poeta recorre a numerosos vocativos, apóstrofes e ao uso frequente do modo imperativo. Há
quem considere que o discurso da Dedicatória segue a estrutura própria do género oratório.
O poeta chama constantemente a atenção do seu destinatário, D. Sebastião, para o que o poema vai celebrar.

Os Cantos n'Os Lusíadas

 Os Lusíadas (cliquem aqui e tenham acesso à obra) Lusíadas anotados


CANTO I 

1 - 3 (Proposição): Camões propõe-se a cantar os feitos dos Portugueses.
4 -5 (Invocação): O poeta invoca as Tágides (ninfas do Tejo).
6 - 18 (Dedicatória): O poema é dedicado a D. Sebastião.
19 (Narração): A Armada no Oceano Índico.
20 - 41: Os Deuses discutem no Olimpo. Júpiter e Vénus apoiam os Portugueses, e Baco opõe-se. Marte apoia Vénus.
42 - 99: A Armada em Moçambique. Vasco da Gama recebe o regedor e este último, incitado por Baco, ataca os Portugueses, mas é vencido. Mostra-se arrependido e oferece um falso piloto ao Gama.
100 - 102: O falso piloto dirige as naus para Quiloa, mas Vénus afasta os Portugueses do perigo de uma emboscada.
103 - 104: Chegada a Mombaça.
105 - 106: Considerações sobre a insegurança e as falsidades da vida. 

CANTO II 

1 - 28: O rei de Mombaça, mandado por Baco, tenta destruir a Armada Portuguesa atraindo-a ao porto. Vénus pede ajuda às Nereidas e estas afastam as naus. O falso piloto e os mouros julgam ter sido descobertos e fogem.
29 - 32: Vasco da Gama apercebe-se da cilada e pede a deus que o ajude a chegar à Índia.
33 - 63: Vénus pede a Júpiter que ajude os Portugueses. Júpiter concorda e profetiza-lhes sucesso. Mercúrio aparece em sonhos ao Gama e diz-lhe para seguir viagem.
64 - 71: Partida de Mombaça. Os Portugueses capturam um navio e os mouros levam-nos a Melinde.
72 - 91: Recepção festiva em Melinde.
92 - 113: O rei de Melinde visita a Armada e pede ao Gama que lhe conte a história de Portugal.

CANTO III 

1 - 2: Invocação de Camões a Calíope.
3 - 5: O Gama resume ao rei de Melinde o que lhe vai contar: terras, gentes e feitos de armas.
6 - 21: Situação geográfica da Europa e de Portugal
22 - 98: Viriato, Conde D. Henrique, reis de Portugal (de D. Afonso Henriques a D. Dinis), Egas Moniz, guerras da Reconquista, Batalha de Ourique.
99 - 135: D. Afonso VI, Batalha do Salado, episódios Líricos de Inês e da formosíssima Maria.
136 - 143: Reinados de D. Pedro e D. Fernando.

CANTO IV 

1 - 50: Mestre de Avis como rei de Portugal, discurso de Nun'Álvares, Batalha de Aljubarrota, conquista de Ceuta.
51 - 65: Reinados de D. Duarte, D. Afonso V e D. João II.
66 - 93: Reinado de D. Manuel. Sonho do rei em que aparecem os rios Ganges e Indo a profetizar o sucesso dos Portugueses na Índia. A Armada parte de Belém rumo ao Oriente.
94 - 104: O Velho do Restelo.

CANTO V

1 - 36: O Gama conta ao rei de Melinde a viagem até ao cabo das tormentas. Partida para o Equador. Fogo de Santelmo. A tromba Marítima. Fernão Veloso na Baía de Santa Helena.
37 - 60: O gigante Adamastor.
61 - 91: O Gama acaba o relato da viagem até Melinde. O escorbuto. Elogio à coragem dos Portugueses.
92 - 100: Desânimo do poeta face ao desprezo dos Portugueses pelas Letras, e em especial pela poesia. 

CANTO VI 

1 - 6: O povo de Melinde festeja os Portugueses. Partida das naus para os mares da Índia.
7 - 37: Baco fala com Neptuno. Concílio dos Deuses Marinhos. Discurso de Baco. Éolo é incitado a soltar os ventos para impedir a viagem dos Portugueses.
38 - 69: A bordo, os Portugueses contam histórias para passar o tempo. Fernão Veloso conta o episódio dos Doze de Inglaterra.
70 - 84: A tempestade.
85 - 91: Vénus e as ninfas abrandam os ventos.
92 - 94: As naus chegam a Calecute. O Gama agradece de novo a Deus.
95 - 99: Camões medita sobre o valor da glória. 

CANTO VII 

1 - 14: A Armada está na barra de Calecute. Camões elogia o espírito aventureiro dos Portugueses, comparando-os com outros povos que nada fazem. 
15 - 22: Entrada em Calecute. Descrição da Índia.
23 - 27: Contacto com o povo desconhecido.
28 - 41: Monçaide descreve o Malabar.
42 - 56: O Gama desembarca e o Catual leva os Portugueses até junto do Samorim.
57 - 66: O Gama visita o Samorim. Acolhimento dos Portugueses.
66 - 77: Paulo da Gama recebe o catual a bordo da Armada.
78 - 87: Camões faz nova invocação às Ninfas do Tejo e do Mondego, e queixa-se da sua infelicidade.

CANTO VIII 

1 - 43: Paulo da Gama descreve ao Catual as figuras das bandeiras das naus.
44 - 56: O Catual regressa a terra. Baco intervém de novo, pondo os indianos contra os Portugueses.
57 - 78: O Gama pede para ser recebido pelo Samorim. Este acredita no discurso do capitão e deixa que regresse à sua nau.
79 - 95: O Catual tenta deter Vasco da Gama em terra, mas como tem medo do Samorim, liberta-o a troco de mercadorias. O capitão regressa à nau e ficam dois feitores em terra.
96 - 99: Reflexões do poeta sobre o poder do ouro. 

CANTO IX 

1 - 17: Em Calecute espera-se uma armada Muçulmana para destruir a Portuguesa. Monçaide avisa o Gama, que levanta âncora, aprisionando os mercadores indianos como castigo.Os mercadores são trocados pelos feitores, e a Armada volta a Portugal.
18 - 50: Vénus decide recompensar os Portugueses.
51 - 92: Ilha dos Amores. Descrição e acolhimento das Ninfas aos Portugueses. Tétis recebe o Gama no palácio.
93 - 95: Exortação de Camões aos que sonham com a imortalidade. 


CANTO X 

1 - 143: Ilha dos Amores. Profecia dos feitos dos Portugueses no Oriente feita por uma Ninfa. Invocação a Calíope. A Ninfa continua as profecias. Tétis indica ao Gama os locais onde os Portugueses serão célebres. Os marinheiros despedem-se e partem.
144: Chegada a Portugal.
145 - 156: O poeta lamenta-se e promete a D. Sebastião cantar as futuras glórias e conclui assim a sua dedicatória, encerrando com ela a obra.

Síntese

 Plano do Poeta


Considerações e opiniões do autor, expressões nomeadamente no inicio e no fim dos cantos.

Destacam-se os momentos em que o poeta:

Refere aquilo que o homem tem de enfrentar: “os grandes e gravíssimos perigos”, a tormenta e o dano no mar, a guerra e o engano em terra (Canto I, est. 105-106);

Põe em destaque a importância das letras e lamenta que os portugueses nem sempre saibam aliar a força e a coragem ao saber e à eloquência (Canto V, est. 92-100);

Realça o valor das honras e da glória alcançadas por mérito (Canto VI, est. 95-96);

Faz a apologia da expansão territorial por espalhar a fé cristã. Critica os povos que não seguem o exemplo do povo português que, com atrevimento, chegou a todos os cantos do mundo (Canto VII, est. 2-14);

Lamenta a importância atribuída ao dinheiro, fonte de corrupções e de traições (Canto VIII, est. 96-99);

Explica o significado da Ilha dos Amores (Canto IX, est. 89-92);

Dirige-se a todos aqueles que pretendem atingir a imortalidade, dizendo-lhes que a cobiça, a ambição e a tirania são honras que não dão verdadeiro valor ao homem (Canto IX, est. 93-95);

Confessa estar cansado de “cantar a gente surda e endurecida” que não reconhecia nem incentivava as suas qualidades artísticas que reafirma nos seus últimos 4 versos da estrofe 154 do Canto X, ao referir-se ao seu “honesto estudo”, à “longa experiência” e no “engenho”, “causas que raramente”. Reforça a apologia das letras (Canto V, est. 92-100);

Manifesta o seu patriotismo e exorta D. Sebastião a dar continuidade à obra grandiosa do povo português (Canto X, est. 145-156).

Canto VII- Espírito de Cruzada

 3

Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A lei da vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade.
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

4
Vede'los Alemães, soberbo gado,
Que por tão largos campos se apacenta;
Do sucessor de Pedro rebelado,
Novo pastor e nova seita inventa;
Vede'lo em feias guerras ocupado,
Que inda co cego error se não contenta,
Não contra o superbíssimo Otomano,
Mas por sair do jugo soberano.
5
Vede'lo duro Inglês, que se nomeia
Rei da velha e santíssima Cidade,
Que o torpe Ismaelita senhoreia
(Quem viu honra tão longe da verdade?),
Entre as Boreais neves se recreia,
Nova maneira faz de Cristandade:
Pera os de Cristo tem a espada nua,
Não por tomar a terra que era sua.

6
Guarda-lhe, por entanto, um falso Rei
A cidade Hierosólima terreste,
Enquanto ele não guarda a santa Lei
Da cidade Hierosólima celeste.
Pois de ti, Galo indino, que direi?
Que o nome «Cristianíssimo» quiseste,
Não pera defendê-lo nem guardá-lo,
Mas pera ser contra ele e derribá-lo![...]

8
Pois que direi daqueles que em delícias,
Que o vil ócio no mundo traz consigo,
Gastam as vidas, logram as divícias,
Esquecidos do seu valor antigo?
Nascem da tirania inimicícias,
Que o povo forte tem, de si inimigo.
Contigo, Itália, falo, já sumersa
Em vícios mil, e de ti mesma adversa.[...]

13
Gregos, Traces, Arménios, Georgianos,
Bradando vos estão que o povo bruto
Lhe obriga os caros filhos aos profanos
Preceptos do Alcorão (duro tributo!).
Em castigar os feitos inumanos
Vos gloriai de peito forte e astuto,
E não queirais louvores arrogantes
De serdes contra os vossos mui possantes.

14
Mas, entanto que cegos e sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente insana,
Não faltarão Cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana:
De África tem marítimos assentos;
É na Ásia mais que todas soberana;
Na quarta parte nova os campos ara;
E, se mais mundo houvera, lá chegara.

Percorrido tão longo e difícil caminho, é momento para que, na chegada a Calecut (est. 3-7), o poeta faça novo louvor aos portugueses. Exalta então o seu espírito de cruzada, a incansável divulgação da fé, por África, Ásia, América, "E, se mais mundos houvera, lá chegara", assim inserindo a viagem à Índia na missão transcendente que assumiram, e que é marca da sua identidade nacional.

Por oposição, critica duramente as outras nações europeias - os "Alemães, soberbo gado", o "duro inglês, o "Galo indigno", os italianos que, "em delícias, / Que o vil ócio no mundo traz consigo, / Gastam as vidas" - por não seguirem o seu exemplo, no combate aos infiéis...

Reflexões do Poeta

 CANTO I


105
O recado que trazem é de amigos,
Mas debaixo o veneno vem coberto;
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos!
Ó caminho de vida nunca certo:
Que aonde a gente põe sua esperança,
Tenha a vida tão pouca segurança!


106
No mar tanta tormenta, e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme, e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?


O  Poeta reflete sobre a fragilidade e efemeridade da vida humana. 
Refere que o povo de Mombaça se finge  amigo dos portugueses para os traírem, mas são descobertos. 
Fala dos perigos e inseguranças, a ponto do ser humano não ter nenhum sítio no mundo onde se possa acolher e sentir seguro.
Apresenta a diferença entre o Homem, "bicho da terra tão pequeno" e as imensas forças da natureza.

Episódio da Ilha dos Amores

 Caráter simbólico do episódio “Ilha dos Amores”:


o mar é o caminho físico para a espiritualidade;
com Vasco da Gama temos o reconhecimento do herói e a Ilha dos Amores é esse reconhecimento;
na  Ilha  dos  Amores  dá­se  o  casamento  cósmico  entre  os marinheiros  e  as  ninfas  – é  a recompensa  e  a dignificação/mitificação do herói;
para  os  marinheiros  fazerem  amor  com  a  ninfas,  são  elevados  ao  plano  do  divino  e  as  ninfas  têm oportunidade de saborear o amor humano;
Tétis  revela  a  Vasco  da  Gama  a  Máquina  do  Mundo,  o  que  permite  a  mitificação  do  herói,  o  amor  e  o conhecimento. São estes últimos que permitem a elevação do ser como pessoa;
a Ilha existe porque os portugueses foram capazes de ultrapassar os seus medos e atingir o conhecimento ao passarem pelo Cabo das Tormentas;
revelação de que o único caminho para o futuro é o amor e o conhecimento (cf. Quinto Império)


Mitificação do herói:

os portugueses conseguiram conquistar o mar e vencer as forças divinas;
a vontade de “ir mais alto” e “mais longe”, a ousadia, a coragem, o sacrifício e o estudo permitiram ao povo português a superação de si próprio e “mais do que prometia a força humana” atingir o seu objetivo;
a  Ilha  dos  Amores  surge  como  a  recompensa  pela  superação  de  todos  os  obstáculos  e  o  alcance  do “horizonte”, existindo, desta forma, a divinização dos portugueses;
a viagem traduz­se na procura da verdade, na passagem do desconhecido para o conhecido, das trevas para a  luz,  a  capacidade  de  ultrapassar  o  medo  e  atingir  a  verdade,  sendo  exemplo  disso  o  episódio  do Adamastor;
a Máquina do Mundo surge como uma nova época do conhecimento, o alargamento de horizontes;
a suprema harmonia dá-se através da união dos homens com os deuses;

Canto VIII- O poder corruptor do vil metal

 96

Nas naus estar se deixa, vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre;
Que não se fia já do cobiçoso
Regedor, corrompido e pouco nobre.
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede imiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
97
A Polidoro mata o Rei Treício,
Só por ficar senhor do grão tesouro;
Entra, pelo fortíssimo edifício,
Com a filha de Acriso a chuva d' ouro;
Pode tanto em Tarpeia avaro vício
Que, a troco do metal luzente e louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,
Do qual quási afogada em pago morre.

98
Este rende munidas fortalezas;
Faz trédoros e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências.
99
Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude!



Os Lusíadas: VIII, 96-99
         Vasco da Gama permanece nas naus e decide não desembarcar, visto que já não confia no ambicioso Catual, pois já o traíra, era muito ambicioso («cobiçoso»), corrupto («corrompido») e «pouco nobre». Por outro lado, Gama espera vir a descobrir a verdade com o tempo, daí também a sua decisão.
         Ora, esta referência ao sucedido a Vasco da Gama é o exemplo que serve de ponto de partida para a reflexão do poeta, que adverte, a partir do verso 5 da estância 96, para o efeito corruptor do dinheiro, que tanto sujeita os ricos como os pobres.

         Na estância 97, o poeta apresenta três casos através dos quais pretende provar a sua tese enunciada na estância anterior, isto é, que exemplificam o poder negativo dos bens materiais – dinheiro e ouro ‑, que levam à adoção de atitudes inesperadas.
         O primeiro exemplo refere-se ao rei da Trácia, que assassinou Polidoro, filho de Príamo, rei de Troia, com o único fito de lhe roubar o ouro. De facto, para o salvar, quando a cidade estava prestes a cair em poder dos Gregos, o rei enviou-o com ouro ao rei da Trácia que, todavia, se apoderou do ouro e o assassinou.

         O segundo caso refere-se a Dánae, filha de Acrísio, rei de Argos (Grécia), que foi encerrada numa torre para que não procriasse e, deste modo, fosse anulada uma profecia de um oráculo que anunciou a morte do soberano às mãos de um neto. Porém, Júpiter metamorfoseou-se em chuva de ouro, introduziu-se na torre e engravidou-a. Desse ato nasceu Perseu, que, concretizando a profecia, assassinou o avô.

         O último exemplo alude a Tarpeia, uma jovem romana que, na esperança de obter anéis de ouro dos Sabinos que sitiavam Roma, lhes abriu as portas da cidade. No entanto, os inimigos não a pouparam, esmagando-a sob as jóias e os escudos, tendo assim ficado soterrada.

         Nas estâncias 98 e 99, o poeta prossegue a enumeração dos efeitos negativos do dinheiro:
a. corrompe o pobre e o rico (estância 96);
b. leva ao assassínio (exemplo do rei da Trácia);
c. conduz à traição (est. 98, v. 1): os soldados rendem-se quando as suas fortalezas ainda se encontram abastecidas;
d. conduz à traição e à falsidade entre os amigos;
e. transforma o mais nobre em vilão (est. 98, vv. 3 a 6): a ambição material pode levar nobres, capitães ou virgens a renderem-se ao seu poder, mesmo tendo consciência de que a sua honra ficará manchada;
f. corrompe as ciências, os juízes e as consciências, levando-as a agir contra os seus princípios morais e culturais (est. 98, vv. 7-8);
g. distorce / perverte a interpretação dos textos (est. 99, vv. 1-2);
h. manipula as leis e a justiça, que se aplicam arbitrariamente (est. 99, v. 2);
i. fomenta o perjúrio (est. 99, v. 3);
j. fomenta a tirania nos reis (est. 99, v. 4);
k. corrompe os membros do clero, ainda que sob uma capa de virtude.

         Em síntese, os vícios provocados pela ambição são os seguintes:
i. a traição (“Faz tredores e falsos os amigos”);
ii. a corrupção (“Este corrompe virginais purezas”);
iii. a arbitrariedade (“Este interpreta mais que subtilmente / Os textos…”);
iv. a mentira / o perjúrio (“Este causa os perjúrios entre a gente”);
v. a tirania (“E mil vezes [hipérbole] tiranos torna os Reis”).